3 de Outubro, 2024 gcoelho

Licença de utilização, ainda é precisa?

A licença de utilização era um documento obrigatório para confirmação da utilização legal de qualquer edifício em Portugal. Ela confirmava que a construção cumpria todos os requisitos legais e urbanísticos necessários para o fim a que se destinava, seja habitação, comércio, indústria ou outros. Embora a sua necessidade tenha sido alvo de diversas discussões ao longo dos anos, e existam situações específicas em que a sua exigência podia ser mitigada, a realidade é que, na prática, ainda era muitas vezes crucial para a transmissão de imóveis.

A necessidade da licença de utilização para a transmissão de imóveis

Tendo a licença de utilização sido um requisito necessária para a celebração de escrituras de transmissão de imóveis durante décadas, com a aprovação do “Pacote Mais Habitação”, em 2023, e, consequentemente do chamado “Simplex Urbanístico”, em 2024, uma das medidas introduzidas mais impactantes foi precisamente a eliminação da exigência da licença de utilização na transmissão de imóveis. A nova legislação tem como objetivo desburocratizar o processo de compra e venda de imóveis, principalmente para os mais antigos.

Marcada por uma pressão (que subsiste) decorrente da necessidade de disponibilização de mais imóveis habitacionais no mercado, a decisão de “aligeirar” os requisitos formais na escritura teve por objetivo simplificar e agilizar o mercado imobiliário, promovendo o acesso à habitação.

Contudo, e ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o facto de deixar de ser exigível a licença de utilização, até porque a figura jurídica da licença de utilização desapareceu do nosso ordenamento jurídico, não significa que tenha sido afastado o processo de controlo prévio, seja na construção seja na atribuição do uso aos imóveis. No que respeita à realização de obras – novas ou que conduzam à alteração do uso, o processo deixa de passar pelo procedimento da licença de utilização, mas, ainda assim, concluída a obra, o construtor deve garantir que o edifício cumpre todas as normas legais, urbanísticas, e de segurança aplicáveis, sendo necessário concluir o procedimento com a entrega do termo de responsabilidade do diretor técnico da obra ou de Fiscalização, acompanhado ou não de telas finais, que atesta conformidade da obra com o projeto previamente aprovado pela Câmara Municipal.

Ou seja, apesar de a licença de utilização ter deixado de existir do ponto de vista legal e, consequentemente, ter deixado de ser requisito necessário e indispensável para a transmissão de um imóvel, continua este a necessitar de passar por inspeções e processos de certificação que garantam o cumprimento das regras urbanísticas, de segurança e construtivas em vigor.

Embora a opinião maioritária entenda que esta mudança de paradigma veio dinamizar o mercado, a verdade é que o “fim da licença de utilização” pode ter causado alguma insegurança que, de certa forma, era conferida pela licença de utilização e, nomeadamente, quanto à legalidade do imóvel, à segurança jurídica e à solidez do investimento, senão vejamos:

  1. Legalidade do imóvel: Ainda que, como referido, se mantenham requisitos urbanísticos e de certificação, certo é que a licença de utilização comprovava que o imóvel havia sido construído em conformidade com o projeto aprovado pela câmara municipal e que cumpria os requisitos técnicos e legais, incluindo normas de segurança, saúde e habitabilidade, não garantindo, no entanto, a regularidade de eventuais obras posteriores não comunicadas ou regularizadas.
  2. Segurança jurídica: Ao assegurar que o imóvel possuía a licença de utilização, as partes envolvidas, nomeadamente o comprador, tinham, à partida, a garantia de que o imóvel não teria riscos de irregularidades urbanísticas, o que evitava litígios ou ordens de demolição.
  3. Solidez do investimento: Um imóvel sem licença de utilização pode ver-se desvalorizado, uma vez que potenciais compradores ou investidores estarão mais reticentes em adquiri-lo.

O que sabemos é que o novo regime, que veio alterar decisivamente a prática de mercado, acabou por ainda não convencer a generalidade das entidades bancárias que financiam aquisição de imóveis sendo poucas aquelas que prescindem de “um qualquer comprovativo” ou de evidência da existência de um processo de licenciamento completo para a atribuição de crédito à aquisição de um imóvel.

Porque é que a obtenção de financiamento por parte dos bancos ficou mais dificultada com o desaparecimento da licença de utilização?

Mesmo tendo presente as alterações legislativas que levaram à não obrigação de apresentação de licença de utilização no momento de adquirir um imóvel, a generalidade das entidades bancárias continua a entender que a ausência da licença de utilização coloca uma série de riscos legais e financeiros, não apenas para os compradores, mas também para as instituições financeiras. A verdade é que alguns bancos em Portugal continuam a recusar o financiamento de imóveis sem esta licença ou documento comprovativo da regularidade do processo de licenciamento de obra e/ou termo de responsabilidade emitido nos termos acima referidos, com base nas seguintes razões:

  1. Risco de desvalorização: Imóveis sem licença de utilização enfrentam o risco de desvalorização ou até de medidas compulsórias por partes das câmaras municipais. Este risco desincentiva os bancos a concederem crédito, uma vez que a hipoteca poderá ficar associada a um bem de valor mais incerto ou inferior ao montante concedido.
  2. Diminuição da liquidez: A ausência de uma licença de utilização pode encerrar em si mesmo uma dificuldade acrescida para a venda de um imóvel já que, quem compra, pode restringir a sua procura a imóveis para os quais tenha sido emitida a licença de utilização.
  3. Cumprimento de diretivas internas: Algumas instituições financeiras possuem diretivas internas que exigem o cumprimento estrito das normas urbanísticas e legais como requisito para qualquer concessão de crédito, salientando-se o requisito de existência de licença de utilização.

Assim, mesmo que a legislação não impeça tecnicamente a transação de imóveis sem licença de utilização, a prática bancária e as exigências de segurança para o comprador fazem com que muitas transações continuem a depender da obtenção de um qualquer  documento administrativo que demonstre o cumprimento da regulamentação aplicável, quer na fase da construção, ou realização de qualquer outra operação urbanística, quer quanto à utilização.

 

Fonte: Doutor Finanças